O alvará (do árabe al-barã, “carta”, “cédula”) é um documento ou declaração governamental que autoriza alguém a praticar determinado atoi. Para o assunto que abordaremos se trata de uma licença concedida pela Prefeitura, o qual permite a localização e o funcionamento de estabelecimentos comerciais, industriais, agrícolas, prestadores de serviços, bem como de sociedades, instituições, e associações de qualquer natureza, vinculadas a pessoas físicas ou jurídicas.
Ante exposto, podemos concluir que a devida operação, de qualquer estabelecimento, precede de autorização do município, que ocorre através do alvará de funcionamento.
Dito isto, é possível exigir tal documento como requisito de habilitação nas licitações públicas?
Toda a organização estatal está disciplinada através do ordenamento jurídico, é o Poder Legislativo responsável por criar regras e disciplinas, não sendo diferente para o procedimento licitatório. O exercício da função administrativa não pode ser pautado pela vontade da Administração ou dos agentes públicos, mas deve obrigatoriamente respeitar a vontade da lei. Aliás, constitui regra constitucional que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”ii.
Não obstante a Lei de Licitações nº 8.666 de 1.993 determinou de forma taxativa quais seriam os documentos a serem exigidos para habilitação nas licitações públicas. Ipsis litteris:
Art. 27. Para a habilitação nas licitações exigir-se-á dos interessados, exclusivamente, documentação relativa a:
I – habilitação jurídica;
II – qualificação técnica;
III – qualificação econômico-financeira;
IV – regularidade fiscal e trabalhista;
V – cumprimento do disposto no inciso XXXIII do art. 7o da Constituição Federal. (Destacamos)
Tratou ainda de minudenciar os documentos relativos à habilitação jurídica, qualificação técnica, qualificação econômico-financeira, regularidade fiscal e trabalhista nos artigos 28 a 31 da lei citada. Veja que na literalidade da lei não há nenhuma menção quanto a exigência de alvará de funcionamento. Ora, se não existe nenhuma expressão taxativa, claramente definida, acerca da exigibilidade qual será o fundamento jurídico que sustente a exigência do alvará em alguns editais?
Após ampla pesquisa e vivência prática no universo licitatório vislumbramos dois fundamentos utilizados que “teoricamente” “amparam” ou “justificam” a exigência do documento em xeque.
Passamos a abordá-los. Há quem defenda que o art. 28, inc.V da Lei de Licitações autoriza a exigência ao redacionar:: “(…) autorização para funcionamento expedido pelo órgão competente, quando a atividade assim exigir.”
Máxima vênia, não podemos corroborar ao entendimento que fundamente sua justificativa em trechos legislativos, sem que busque encontrar a real intenção do legislador e a correta interpretação da norma.
Vejamos o que estabelece o art. 28 e seus incisos:
Art. 28. A documentação relativa à habilitação jurídica, conforme o caso, consistirá em:
I – cédula de identidade;
II – registro comercial, no caso de empresa individual;
III – ato constitutivo, estatuto ou contrato social em vigor, devidamente registrado, em se tratando de sociedades comerciais, e, no caso de sociedades por ações, acompanhado de documentos de eleição de seus administradores;
IV – inscrição do ato constitutivo, no caso de sociedades civis, acompanhada de prova de diretoria em exercício;
V – decreto de autorização, em se tratando de empresa ou sociedade estrangeira em funcionamento no País, e ato de registro ou autorização para funcionamento expedido pelo órgão competente, quando a atividade assim o exigir. (Destacamos)
Ao realizarmos a leitura do dispositivo na íntegra não resta duvidas que o legislador buscou estabelecer regras diferentes para cada regime jurídico e que o “ato de registro ou autorização para funcionamento expedido pelo órgão competente, quando a atividade assim o exigir” diz respeito somente às sociedades estrangeiras em funcionamento no País.
Cada “tipo societário” demonstra sua existência através de um ato constitutivo diferente, observando características ímpares uma da outra, de modo que possa comprovar a titularidade de direitos e obrigações. Ou seja, o rol de exigências, inc. I ao V, não é cumulativo e deve ser analisado “conforme o caso” como bem pondera o art. 28 “caput”.
De forma objetiva, simplória e didática:
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A pessoa física que queira participar de licitação comprovará sua habilitação jurídica através da cédula de identidade (inc. I);
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Empresas individuais através do registro comercial (inc. II);
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As sociedades comerciais mediante estatuto ou contrato social (inc. III) e se tratando de sociedade de ações deverá ser acompanhada da eleição de seus administradores (inc. III);
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Sociedades civis mediante ato constitutivo acompanhado da prova de diretoria em exercício (inc. IV); e
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Sociedade estrangeira em funcionamento no Brasil através de decreto de autorização e ato de registro ou autorização para funcionamento, quando a atividade assim exigir (inc. V).
Isto posto, inexiste relação entre o inc. V do art. 28 com o alvará de funcionamento, trata-se tão somente da autorização de funcionamento de uma sociedade estrangeira, vez que, esta é a regra para que possa ser titular de direitos e obrigações, conforme determina o Cód. Civil em seu art. 1.134. In verbis:
Art. 1.134. A sociedade estrangeira, qualquer que seja o seu objeto, não pode, sem autorização do Poder Executivo, funcionar no País, ainda que por estabelecimentos subordinados, podendo, todavia, ressalvados os casos expressos em lei, ser acionista de sociedade anônima brasileira. (Destacamos)
Superada esta questão outro fundamento utilizado para “amparar” a exigência do alvará de funcionamento como exigência de habilitação é o art. 30, inc. IV o qual estabelece:
Art. 30. A documentação relativa à qualificação técnica limitar-se-á a:
(…)
IV – prova de atendimento de requisitos previstos em lei especial, quando for o caso.
É trivial que a norma possui eficácia limitada, ou seja, há necessidade de existência legal para sua devida aplicação e não existindo esta não produzirá efeitos.
Por oportuno questionamos, qual seria o nexo existente entre o alvará de funcionamento com a habilitação técnica?
O alvará de funcionamento tão somente autoriza localização e funcionamento, independentemente do segmento, não disciplina regras técnicas ou específicas acerca da comercialização ou produção de determinado bem. Assim, descaracterizando o aspecto técnico almejado pela norma em discussão. Com propriedade que lhe é peculiar Marçal Justen Filho pondera que:
“A expressão “qualificação técnica” tem grande amplitude e significado. Em termos sumários, consiste no domínio de conhecimento e habilidades teóricas e práticas para execução do objeto a ser contratado. Isso abrange inclusive, a situação de regularidade em face de organismos encarregados de regular determinada profissão.”iii
Deste modo, determinados nichos de mercado estão sujeitos a disciplinas legais específicas sobre regras de comercialização ou produção, exemplo típico são empresas que comercializam armas de fogo, explosivos, alimentos, bebidas e entre outras. Essas atividades estão condicionadas ao atendimento de regras singulares pertinentes ao seu segmento, sejam através de leis ou através de regulamentos executivos. Portanto, não podemos admitir que o objetivo finalístico do art. 30, inc. IV seja contemplar o alvará de funcionamento.
Na prática a exigência do Alvará de Localização, muitas vezes, é inserida com intuito de direcionar o edital ou limitar os licitantes, o que é ilegal e a jurisprudência corrobora ao entendimento defendido. A saber:
LICITAÇÃO – ARGUIÇÃO DE PERDA DE OBJETO AFASTADA – HABILITAÇÃO – REGULARIDADE FISCAL – ALVARÁ DE FUNCIONAMENTO – EXIGÊNCIA DE CÓPIA AUTENTICADA OU DOCUMENTO ORIGINAL – DOCUMENTO NÃO ELENCADO NA LEI Nº 8.666/93 – SEGURANÇA CONCEDIDA. Não prospera a arguição de perda de objeto em razão da publicação do resultado da concorrência, se ainda houver pendente de julgamentos recursos aviados pela licitante. A finalidade do procedimento licitatório é obter a melhor proposta para a Administração Pública, mediante o maior número de concorrentes possíveis. O edital ao exigir a apresentação de documento não elencado nos artigos 27 e 29 da Lei nº 8.666/93 como comprovação de regularidade fiscal, fere os princípios da ampla concorrência e acessibilidade, além de afrontar o princípio da razoabilidade.
(MS 84365/2009, DES. CARLOS ALBERTO ALVES DA ROCHA, SEGUNDA TURMA DE CÂMARAS CÍVEIS REUNIDAS DE DIREITO PRIVADO, Julgado em 17/11/2009, Publicado no DJE 11/12/2009) (Destacamos)
DENÚNCIA. PREFEITURA MUNICIPAL. PREGÃO PRESENCIAL. CONTRATAÇÃO DE SERVIÇOS DE TRANSPORTE DE PASSAGEIROS E ALUNOS DA REDE PÚBLICA DE ENSINO RESIDENTES NO MUNICÍPIO. AUSÊNCIA DE AMPLA PESQUISA DE PREÇOS. EXIGÊNCIA DE ALVARÁ DE FUNCIONAMENTO NA FASE DE HABILITAÇÃO. EXIGÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE DISPONIBILIDADE DE EQUIPAMENTOS E PESSOAL TÉCNICO ESPECIALIZADO PARA HABILITAÇÃO. IRREGULARIDADES. APLICAÇÃO DE MULTA AO PREGOEIRO E SUBSCRITOR DO EDITAL
(…)Vistos, relatados e discutidos estes autos, ACORDAM os Exmos. Srs. Conselheiros da Primeira Câmara, por unanimidade, em conformidade com a ata de julgamento, diante das razões expendidas no voto do Relator, em: I) julgar procedente a denúncia, considerando irregulares: a) a exigência de alvará de funcionamento na fase de habilitação; b) a exigência de comprovação de disponibilidade de equipamentos e pessoal técnico especializado para habilitação; e c) a ausência de ampla pesquisa de preços; II) deixar de aplicar multa pela ausência de ampla pesquisa de preços, nos termos da fundamentação; III) aplicar multa ao Senhor Diego José de Souza Moreira, pregoeiro e subscritor do edital, no valor de R$1.000,00 (mil reais) pelas irregularidades discriminadas nos itens a e b, o que totaliza o montante de R$2.000,00 (dois mil reais), a teor do disposto no inciso II do art. 85 da Lei Orgânica do Tribunal; IV) deixar de aplicar multa ao Senhor Marcelo Faria Pereira, prefeito municipal, por entender que as falhas apuradas nos presentes autos são de responsabilidade exclusiva do pregoeiro, mas recomendando-lhe que, nas próximas licitações, não restrinja a cotação de preços aos fornecedores locais, bem como realize ampla pesquisa nos sites dos órgãos públicos; V) determinar a intimação das partes, após a deliberação; VI) determinar o arquivamento dos autos, após promovidas as medidas legais cabíveis à espécie.
(TCE-MG – DEN: 944779, Relator: CONS. CLÁUDIO TERRÃO, Data de Julgamento: 10/05/2016, Data de Publicação: 14/06/2016) (Destacamos)
(…)
Sendo assim, exigir o alvará de funcionamento como condição de habilitação da licitante implica na imposição de cláusula ou condição que importe em frustração do caráter competitivo do certame. Entende-se que, se a Lei nº 8666/93 veda a existência de qualquer cláusula ou condição que frustre o caráter competitivo, se o rol dos artigos 27 a 31 é taxativo, ou seja, não admite que a autoridade amplie suas exigências, e se a legislação específica que regulamenta a modalidade Pregão, Lei nº 10520/2002, sequer faz menção, em seu inciso XIII do artigo 4º, à exigência do alvará de funcionamento, à autoridade administrativa é vedado incluir no edital essa exigência.
(Processo nº 877079 – Primeira Câmara – Relator: Conselheiro José Alves Viana – Julgamento em: 12/11/13) (Destacamos)
Reforçando ao exposto o ilustre jurista Jessé Torres Pereira Junior leciona:
“(…) A redação adotada pelo novo estatuto estabelece relações numerus clausus, vedando que Administração demande apresentação de qualquer prova diversa daquelas inscritas nos termos da lei.Suprimiu, no pertinente àquelas qualificações, o espaço discricionário e criou vinculação estrita. Poderá a Administração deixar de exigir todos os documentos previstos na lei, sob pena de exceder-se no exercício do dever geral de licitar e sujeitar-se à invalidação da exigência indevida, mantidas apenas aquelas que se compatibilizarem com a provisão legal.”iv
No mesmo contexto, trazemos à baila os ensinamentos de Marçal Justen Filho:
“o art. 27 efetivou a classificação dos requisitos de habilitação. As espécies constituem “numerus clausus”.v(…)
“o elenco dos arts. 28 a 31 deve ser reputado como máximo e não como mínimo, ou seja, não há imposição legislativa a que a Administração, em cada licitação, exija comprovação integral quanto a cada um dos itens contemplados nos referidos dispositivos. O edital não poderá exigir mais do que ali previsto, mas poderá demandar menos”.vi
Sendo assim, exigir o alvará de funcionamento como condição de habilitação da licitante implica a imposição de cláusula ou condição que frustra o caráter competitivo do certame. A Lei 8.666/93 define a documentação que poderá ser exigida para comprovar habilitação jurídica, qualificação técnica, econômico-financeirae regularidade fiscal. Não prevê apresentação de licença ou alvará de funcionamento. O documento em xeque não se presta a comprovar qualificação técnica, econômico-financeira ou regularidade fiscal. Num esforço interpretativo, poder-se-ia cogitá-lo como documento relativo à habilitação jurídica, mas, conforme registrado, a lei não prevê tal hipótese.
S.M.J.
Este é o nosso entendimento.
Por Pedro Luiz Lombardo / Rodolfo André P. de Moura / Carlos Everaldo de Jesus
Jurídico ConLicitação
4 comentários em “A exigência de alvará de localização/funcionamento como documento habilitatório nas licitações públicas”
Parabéns pelo artigo, ótimos apontamentos acerca do assunto, que por muitas vezes é utilizado erroneamente pelos órgãos, entidades e agentes.
Excelente matéria
Fui inabilitado em licitações estaduais por falta do Alvará, pois a prefeitura de minha cidade criou uma “Lei de Liberdade Econômica”, na qual dispensa algumas
empresas do alvará, porem fornecem um documento comprovando que a empresa está apta a exercer a atividade. No entanto os órgãos estaduais e até de outros municípios não aceitam tal declaração.
Olá Olmiro,
Pois é meu amigo! Como pode ver a exigência de alvará de funcionamento é polêmica até mesmo nos órgãos de controle que divergem opiniões. Sugiro tentar seguir o caminho e argumentação citada no post para tentar afastar restrições ou inabilitações que o prejudique.
Um grande abraço!