Legalidade da exigência do certificado de boas práticas

Legalidade da exigência do certificado de boas práticasA exigência do certificado de boas práticas de fabricação como cumprimento da qualificação técnica exigida nas licitações é um tema polêmico e as respostas atualmente existentes são vacilantes e controvertidas.

Isto ocorre devido a exigência do certificado não estar elencado expressamente no artigo 30 da Lei 8666/93 que são consideradas do tipo numerus clausus, ou seja, limitado as estabelecidos naquele dispositivo.

Não é incomum a exigência do certificado de boas práticas de fabricação nas licitações de medicamentos uma vez que a Resolução 59 da ANVISA estabeleceu que:

Art. 1º – Determinar a todos fornecedores de produtos médicos, o cumprimento dos requisitos estabelecidos pelas “Boas Práticas de Fabricação de Produtos Médicos”, conforme Anexo I desta Resolução.

§ 1º Os estabelecimentos que armazenem, distribuam ou comercializem produtos médicos deverão, igualmente, cumprir o previsto no Anexo I desta Resolução, no que couber.

§ 2º Outros produtos de interesse para o controle de risco à saúde da população, alcançados pelo Sistema Nacional de Vigilância Sanitária – SNVS e indicados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária ANVS, equiparam-se aos produtos médicos referidos neste artigo, estando sujeitos às disposições desta Resolução.

Nesse compasso, o Decreto 3.961/2001, definiu o certificado de boas práticas de fabricação como:

Certificado de Cumprimento de Boas Práticas de Fabricação e Controle – Documento emitido pela autoridade sanitária federal declarando que o estabelecimento licenciado cumpre com os requisitos de boas práticas de fabricação e controle;

Nesse diapasão, por força do inciso IV do artigo 30 da Lei de Licitações (qualificação técnica), o Administrador público pode e deve exigir, além daqueles arrolados na referida norma, entre os artigos 28 a 31, outros documentos para fim de aferir se tecnicamente o licitante está apto a contratar com a Administração, a saber:

IV – prova de atendimento de requisitos previstos em lei especial, quando for o caso. (Grifo e negrito nosso)

Assim, se a legislação que rege determinado setor exige determinadas posturas dos particulares, como por exemplo, alvarás, certificados, registro etc, a Administração deve exigir também, a fim de resguardar o interesse público envolvido na contratação.

Ou seja, a exigência do certificado de boas práticas de fabricação em licitações vem sendo respaldada no dispositivo legal supremencionado que autoriza a Administração a realizar exigências compatíveis com requisitos previstos em “lei especial”. Sob esta ótica podemos dizer que é legal a exigência.

O Poder Judiciário já se manifestou no sentido da legalidade do certificado:

LICITAÇÃO E CONTRATOS ADMINISTRATIVOS. EDITAL. EXIGÊNCIA DE CERTIFICAÇÃO DE BOAS PRÁTICAS DE FABRICAÇÃO E CONTROLE DA ANVISA. NÃO APRESENTAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA VINCULAÇÃO.
Prevendo o edital a apresentação de Certificação de boas práticas de Fabricação e Controle expedido pela ANVISA, não pode sagrar-se vencedora empresa que não apresentar o documento, sob pena de infringência ao princípio da vinculação ao edital. HIPÓTESE DE NEGATIVO DE SEGUIMENTO AO RECURSO. (Agravo de Instrumento n. 70029408721, Vigésima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Rejane Maria Dias de Castro Bins, Julgado em 09/04/2009).

PROCESSUAL CIVIL. MANDADO DE SEGURANÇA. PROCESSO LICITATÓRIO. CERTIFICADO DE BOAS PRÁTICAS DA ANVISA. VIGILÂNCIA SANITÁRIA. 1. A exigência de apresentação do Certificado de Boas Práticas da ANVISA pelos licitantes encontra respaldo na legalidade (Leis nº 8.666/93 e 10.520/02), constituindo-se também em elemento configurador da precaução no trato com as questões que envolvem a saúde dos pacientes. 2. Pode configurar dano irreparável à saúde pública a aquisição de insumos médicos não seguros, e causar dano ao Erário a aquisição dos mesmos em regime de urgência, em face da suspensão da licitação. (TRF 4 – AG 200904000002474, Rel. MARGA INGE BARTH TESSLER – D.E. 25.5.2009)

APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO ADMINISTRATIVO. LICITAÇÃO. PRINCÍPIO DA VINCULAÇÃO AO EDITAL. CABIMENTO E LEGALIDADE DA EXIGÊNCIA. RESPEITO AO PRAZO DE OITO DIAS ENTRE O AVISO DA LICITAÇÃO E A ABERTURA DAS PROPOSTAS.
1. Cabe ao Poder judiciário a análise da legalidade das exigências feitas pela Administração em edital de licitação. 2. As licitações são submetidas ao princípio da vinculação ao edital, que só pode ser afastado quando as exigências previstas se mostrarem desnecessárias ou ilegais. 2. Caso concreto em que não é ilegal, nem se mostra descabida, a exigência de apresentação de Certificado de Boas Práticas de fabricação como exigência para habilitação em licitação cujo objeto é aquisição de próteses para hospitais da rede pública. (Apelação Cível n. 70030652614 – RELATOR: Denise Oliveira Cezar – Diário de Justiça do dia 06/01/2010)

Entretanto, este não é o entendimento do Tribunal de Contas da União. A Corte de Contas defende o entendimento que para o registro do produto no Ministério da Saúde o fabricante teve que demonstrar boas práticas de fabricação, tornando-se desnecessária a apresentação nos processo licitatório, isto é, o registro do produto já é suficiente.

Observe recente manifestação do TCU quanto ao assunto:

Pregão para registro de preços: 1 – A exigência de certificado de boas práticas de fabricação não se coaduna com os requisitos de habilitação previstos na Lei 8.666/1993

Em face de representação, o Tribunal tomou conhecimento de potenciais irregularidades no Pregão nº 208/2010, realizado pelo Ministério da Saúde – MS, para registro de preços, e cujo objeto consistiu na aquisição de kits de testes de quantificação de RNA viral do HIV-1, em tempo real, no total de 1.008.000 unidades, a serem distribuídos para as 79 unidades que compõem a Rede Nacional de Laboratórios (com previsão de mais quatro a serem instaladas), em todos os estados da Federação. Dentre tais irregularidades, constou exigência, para o fim de qualificação técnica, de certificado de boas práticas de fabricação, o qual, na visão da representante, estaria em contrariedade à ordem jurídica. Para o relator, assistiria razão à representante, em razão da ausência de previsão legal para a exigência em questão. Para ele, “o art. 30 da Lei nº 8.666/93 enumera os documentos que poderão ser exigidos para fim de comprovação da qualificação técnica, entre os quais não se incluem certificados de qualidade”. Assim, não haveria sido observado o princípio da legalidade. Além disso, ainda para o relator, “ainda que se considerasse legal a exigência supra, ela não atenderia, no caso concreto, ao princípio da proporcionalidade, não se revelando, na espécie, indispensável à garantia do cumprimento das obrigações a serem assumidas perante o Ministério da Saúde”. Por conseguinte, votou, e o Plenário aprovou, por que se determinasse ao Ministério da Saúde a exclusão do edital do Pregão nº 208/2010 da exigência do certificado de boas práticas de fabricação, por absoluta falta de amparo legal, bem como por não se mostrar indispensável à garantia do cumprimento das obrigações a serem pactuadas. Acórdão n.º 392/2011-Plenário, TC-033.876/2010-0, rel. Min. José Jorge, 16.02.2011.

Este entendimento é de grande relevância uma vez que compete exclusivamente à união legislar sobre as normas gerais de licitação – inciso XXVII, artigo 22 da CF – e o alcance das Decisões do TCU está expresso na Súmula nº 222:

Súmula nº 222
As Decisões do Tribunal de Contas da União, relativas à aplicação de normas gerais de licitação, sobre as quais cabe privativamente à União legislar, devem ser acatadas pelos administradores dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Cumpri-me frisar que estamos falando de objetos cuja própria regulamentação exige o referido certificado. Não se enquadrando na hipótese do inciso IV do artigo 30 da Lei de Licitações – lei especial – inequivocamente não há o que falar na exigência do certificado de boas práticas, eis que a documentação a ser exigida, para fins de habilitação, dos interessados que desejem contratar com a Administração Pública devem limitar-se ao rol fixado entre o artigo 28 e 31 da Lei de Licitações. O certificado de boas práticas não consta nesta relação.

Acerca do assunto, observe o que diz o Jurista Marçal Justen Filho:

“O elenco dos arts. 28 a 31 deve ser reputado como máximo e não mínimo. Ou seja, não há imposição legislativa a que a Administração, a cada licitação, exija comprovação integral quanto a cada um dos itens contemplados nos referidos dispositivos. O edital não poderá exigir o mais do que ali previsto. Mas poderá demandar menos.” (in Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 11º Ed, São Paulo: Dialética, 2005, p. 306).

Se não há determinação legal que determine esta exigência, o diploma editalício traz ordem incompatível com a Constituição Federal que estabelece:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…)
II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

Nesta esteira, Hely Lopes Meirelles, pai do Direito Administrativo Brasileiro leciona que ” Na Administração Pública, não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto, na Administração pessoal é licito fazer tudo o que a lei não proíbe. Na Administração Pública só é permitido fazer aquilo que a lei autoriza.” (grifei)

Trata-se do princípio da legalidade.

Por conseguinte, veja que esta exigência do certificado de boas práticas restringe o caráter competitivo da licitação que é vedado por lei, de acordo com o inciso I, § 1º do artigo 3º da Lei 8666/93. Vejamos:

§ 1º É vedado aos agentes públicos:

I – admitir, prever, incluir ou tolerar, nos atos de convocação, cláusulas ou condições que comprometam, restrinjam ou frustrem o seu caráter competitivo, inclusive nos casos de sociedades cooperativas, e estabeleçam preferências ou distinções em razão da naturalidade, da sede ou domicílio dos licitantes ou de qualquer outra circunstância impertinente ou irrelevante para o específico objeto do contrato, ressalvado o disposto nos §§ 5° a 12 deste artigo e no art. 3° da Lei n° 8.248, de 23 de outubro de 1991; (negrito e grifo nosso)

Corroborando nosso raciocínio o Tribunal de Contas da União decidiu que:

“O Edital não pode conter restrições ao caráter competitivo do certame, tais como a proibição do envio de documentos por via postal, exigência de balanços patrimoniais do próprio exercício da licitação, exigência de comprovação da capacidade de comercialização no exterior e de certificado profissional, em caso de profissão não regulamentada” (Acórdão nº 1.522/2006, Plenário, rel. Min. Valmir Campelo).

S.M.J, é o parecer.

Por Rodolfo André P. de Moura / Pedro Luiz Lombardo
Jurídico da ConLicitação

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