Não é incomum questionamentos sobre a discricionariedade administrativa por parte do Administrador público diante das lacunas nas normas legais que envolvem às compras governamentais.
Situação peculiar é a apresentação, por parte dos licitantes, de propostas cujo produto possua característica distinta da exigida no edital, porém com qualidade superior e com menor preço.
Por um lado a Administração não poderia classificar esta proposta por estar em desacordo com o edital, e por outro lado é a proposta de menor valor e com um produto, em tese, melhor.
A Lei de Licitações versa que a proposta que desviar do pedido do edital deverá ser desclassificada de acordo com o inciso I do artigo 48 da Lei 8666/93 (modalidades tradicionais), inciso X do artigo 4 da Lei 10520/2002 e § 2 do artigo 22 do Decreto 5450/2005 (modalidade pregão), que regram respectivamente:
Art. 48. Serão desclassificadas:
I – as propostas que não atendam às exigências do ato convocatório da licitação;X – para julgamento e classificação das propostas, será adotado o critério de menor preço, observados os prazos máximos para fornecimento, as especificações técnicas e parâmetros mínimos de desempenho e qualidade definidos no edital;
§ 2º O pregoeiro verificará as propostas apresentadas, desclassificando aquelas que não estejam em conformidade com os requisitos estabelecidos no edital.
Observe o que ressalta o mestre Hely Lopes Meirelles: “A proposta que se desviar do pedido ou for omissa em pontos essenciais é inaceitável, sujeitando-se à desclassificação” (in Licitação e contrato administrativo, 14º ed. 2007, p. 157)
Neste sentido, o licitante está infringindo o principio da vinculação ao instrumento convocatório atingindo o artigo 3º e 41º da Lei 8666/93, que rezam:
Art. 3o A licitação destina-se a garantir a observância do princípio constitucional da isonomia, a seleção da proposta mais vantajosa para a administração e a promoção do desenvolvimento nacional sustentável e será processada e julgada em estrita conformidade com os princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da publicidade, da probidade administrativa, da vinculação ao instrumento convocatório, do julgamento objetivo e dos que lhes são correlatos. (Grifo nosso)
Art. 41. A Administração não pode descumprir as normas e condições do edital, ao qual se acha estritamente vinculada.
Novamente, com sapiência, Hely Lopes Meirelles ensina:
“A vinculação ao edital significa que a Administração e os licitantes ficam sempre adstritos aos termos do pedido ou do permitido no instrumento convocatório da licitação, quer quanto ao procedimento, quer quanto à documentação, às propostas, ao julgamento e ao contrato. Em outras palavras, estabelecidas as regras do certame, tornam-se obrigatórias para aquela licitação durante todo o procedimento e para todos os seus participantes, inclusive para o órgão ou entidade licitadora.” (in Licitação e contrato administrativo, 14º ed. 2007, p. 39)
Este princípio tem por objetivo que a Administração bem como os licitantes não se afastem dos ditames fixados no ato convocatório.
Logo, sobre este olhar, poderíamos dizer que a proposta necessariamente deverá ser considerada desclassificada.
Em que pese este entendimento, não devemos desconsiderar o interesse público envolvido. Estamos falando de um produto superior e com valor menor. O princípio da vinculação ao instrumento convocatório não pode afastar o princípio da economicidade. Não se deve interpretar as regras editalícias de forma restritiva, uma vez que não prejudique a Administração Pública. Deve-se analisar se a divergência apresentada altera a essência do produto que a Administração pretende adquirir.
Hipoteticamente a Administração venha abrir licitação para adquirir caneta, tendo entre as exigências o rendimento mínimo de escrita de 1700 metros. Suponha-se que um licitantes apresente proposta de menor valor, em conformidade às especificações do edital, exceto ao rendimento que é de 2000 metros. Rigorosamente a proposta desatendeu a exigência do edital. Entretanto, não consideramos que o licitante deixou de preencher os requisitos necessários do edital, e sim, apresentou um requisito de “sobra”. É no mínimo desarrazoado a Administração desclassificar tal propostas, eis que além de ser o menor preço, receberá um produto superior.
Destarte, é essencial identificar se a falta de harmonia da proposta com o edital interfere na natureza do produto.
Acerca do assunto, o jurista Marçal Justen Filho leciona:
“Obviamente, a oferta de vantagens ou benefícios não previstos ou superiores aos determinados no ato convocatório não prejudica o licitante. Se o benefício não for de ordem a alterar o gênero do produto ou do serviço, nenhum efeito dele se extrairá. Porém, se a vantagem configurar, na verdade, outra espécie de bem ou serviço, deverá ocorrer a desclassificação da proposta – não pela ‘vantagem’ oferecida, mas por desconformidade com o objeto licitado”. (in Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 14º Ed, São Paulo: Dialética, 2010.)
Importa transcrever o seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça:
ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. CONCORRÊNCIA DO TIPO MENOR PREÇO. ATENDIMENTO ÀS REGRAS PREVISTAS NO EDITAL. PRODUTO COM QUALIDADE SUPERIOR À MÍNIMA EXIGIDA.
1. Tratando-se de concorrência do tipo menor preço, não fere os princípios da isonomia e da vinculação ao edital a oferta de produto que possua qualidade superior à mínima exigida, desde que o gênero do bem licitado permaneça inalterado e seja atendido o requisito do menor preço.
2. Recurso ordinário não-provido
(STJ MS 15817 RS 2003/0001511-4, 2ª T., rel. Min. JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, DJ de 03.10.2005 p. 156)
Em recente manifestação o Tribunal de Contas da União decidiu:
É admissível a flexibilização de critério de julgamento da proposta, na hipótese em que o produto ofertado apresentar qualidade superior à especificada no edital, não tiver havido prejuízo para a competitividade do obtido revelar-se vantajoso para a administração
Representação formulada por empresa noticiou supostas irregularidades no Pregão Eletrônico 21/2011, conduzido pelo Centro de Obtenção da Marinha no Rio de Janeiro – COMRJ, cujo objeto é o registro de preços para fornecimento de macacão operativo de combate para a recomposição do estoque do Depósito de Fardamento da Marinha no Rio de Janeiro. A unidade técnica propôs a anulação do certame fundamentalmente em razão de a proposta vencedora ter cotado uniformes com gramatura superior à da faixa de variação especificada no edital (edital: 175 a 190 g/m2; tecido ofertado na proposta vencedora: 203 g/m2), o que deveria ter ensejado sua desclassificação. O relator, contudo, observou que o tecido ofertado “é mais ‘grosso’ ou mais resistente que o previsto no edital” e que o COMRJ havia reconhecido que o produto ofertado é de qualidade superior à prevista no edital. A esse respeito, anotou que a Marinha do Brasil está habilitada a “emitir opinião técnica sobre a qualidade do tecido”. Levou em conta, ainda, a manifestação do Departamento Técnico da Diretoria de Abastecimento da Marinha, no sentido de que o produto atenderia “à finalidade a qual se destina, tanto no que se refere ao desempenho, quanto à durabilidade”. Noticiou ainda que a norma técnica que trata desse quesito foi posteriormente alterada para admitir a gramatura 203 g/m2 para os tecidos desses uniformes. Concluiu, então, não ter havido afronta ao interesse público nem aos princípios licitatórios, visto que o procedimento adotado pela administração ensejará a aquisição de produto de qualidade superior ao desejado pela administração contratante, por preço significativamente inferior ao contido na proposta da segunda classificada. Ressaltou também a satisfatória competitividade do certame, do qual participaram 17 empresas. E arrematou: “considero improvável que a repetição do certame com a ínfima modificação do edital (…) possa trazer mais concorrentes e gerar um resultado mais vantajoso …”. O Tribunal, então, ao acolher proposta do relator, decidiu julgar parcialmente procedente a representação, “em face da verificação de apenas de falhas formais na condução do Pregão Eletrônico 21/2011, que não justificam a sua anulação”. Acórdão 394/2013-Plenário, TC 044.822/2012-0, relator Ministro Raimundo Carreiro, 6.3.2013.
S.M.J., é o parecer.
Por Rodolfo André P. de Moura / Pedro Luiz Lombardo
Jurídico da ConLicitação
9 comentários em “Produtos com maior qualidade e menor preço podem ser ofertado mesmo em desacordo com edital”
qual lei rege que pode ser entregue embalagem com quantidade superior a licitada?
Olá Hellen,
Infelizmente não temos nenhuma legislação que seja clara neste sentido, tornando necessária uma interpretação jurídica. A jurisprudência é uma ótima fonte, por vezes com representatividade mais expressiva do que dispositivos legais, pois revelam a interpretação de juízes, desembargadores e ministros em análises de casos concretos de maneira mais aprofundada.Sendo assim caso necessite utilize a jurisprudência citada (Acórdão 394/2013-Plenário, TC 044.822/2012-0, relator Ministro Raimundo Carreiro, 6.3.2013) para sustentar tal afirmação.
Permanecendo a dúvida continuamos à disposição.
Não concordo muito com isso, por um simples fato: Duas prováveis licitantes L1 e L2 (que fornecem “produtos superiores” ao solicitado) após lerem o edital pensam: L1: “Puxa não posso participar pois meu produto não se enquadra no que foi determinado no Edital”. E, o outro L2: “Vou participar, vai que aceitem”.
Daí, a Administração classifica esse licitante (L2) que acaba sendo o vencedor.
Como fica o pensamento e o sentimento da outra empresa (L1) ao ver esse desfecho? Foi “punido” por obedecer o que foi determinado no edital e o outro foi beneficiado por, em tese, “desrespeitar” as diretrizes do Edital…
Acontece muito disso no Brasil: Exemplo: numa palestra, numa reunião, num ato qualquer, é quase unanimidade escutar: “Vamos esperar mais um pouquinho, antes de começar”: Puniu quem chegou no horário e beneficiou quem pensa: “Nunca começa no horário”…
É isso. Tudo aqui é invertido…
L1 não foi necessariamente punido, somente deixou de participar, poderia ter entrado em contato com o departamento ou secretaria de compras e questionar a possibilidade da participação no certame…
Qual artigo fala sobre melhor o produto, maior o preço ?
Olá Aline,
Desculpe mas não compreendi exatamente o conteúdo que necessita, pode me explicar melhor?
Um grande abraço.
L1 não participou por desconhecimento e que, mesmo com seu produto em desconformidade com o ato convocatório, porém com qualidade superior, poderá participar do certame, portanto será “punida” L1 sim, por sua falta de conhecimento, mas não por irregularidade do processo.
LEMBRANDO QUE: Via de regra, as concorrentes participam com produtos de qualidade inferior ao solicitado no ato convocatório, assim, se submetem a possibilidade de serem aceitas e, venderem produtos de menor qualidade com preços superiores, lucrando mais. O contrario disto, também ocorre (maior qualidade x menor preço), mas não com a mesma frequência.
Supondo que o produto licitado, exija dimensoes unicas de um FABRICANTE, e que o potential concorrente, extrapola em pouco mais de 5%, imagine licitação de produto comum….um balde. E ainda que a dimensao da boca unica de L1, mas menor que L2, garanta esse unico fornecedor possivel. Porem, ao mesmo tempo, L2, oferece o balde com uma capacidade maior que o exigido, mesmo assim a administração deveria seguir com a licitação? Isso sim é o que acontece no Brasil… e nao L2 dizer ….” vai que aceitem”…..
Olá Marcelo,
Juridicamente sempre deve perseguir a finalidade pretendida, se o L2 atende porque não a especificação não foi inserida no T.R. é importante sempre averiguar se não estamos diante de uma restrição indevida e injustificada. Nesses casos é importante impugnar as regras restritivas.
Um grande abraço.